ENCANTO, UMA ANÁLISE PARA LUMIAR NOSSO CONHECIMENTO SOBRE FAMÍLIAS
ENCANTO, UMA ANÁLISE PARA LUMIAR NOSSO CONHECIMENTO SOBRE FAMÍLIAS

ENCANTO, UMA ANÁLISE PARA LUMIAR NOSSO CONHECIMENTO SOBRE FAMÍLIAS

ATENÇÃO! CONTÉM SPOILERS 🙂

Certamente não é coincidência que o primeiro post aqui da Lumiares seja uma análise sobre Encanto, a animação infantil da Disney lançada recentemente nos cinemas. Encanto fala de inúmeros pontos de luz que nos guiam nessa jornada que chamamos vida, que no filme é tão ricamente simbolizada pela vela que nunca se apaga, que traz milagres, dons e magia para a família, mas que enfraquece diante de um perigo tão cotidiano: os conflitos familiares não conversados.

O longa narra a história de uma família colombiana que recebeu o milagre da magia após passar pela trágica perda da sua casa e da morte do patriarca ao defender a comunidade. A matriarca (avó) então recebe uma casa com vida para criar seus três filhos e cada um deles recebe um dom especial, assim como a geração de netos, com exceção de Mirabel.

Claramente o filme aponta o papel central das mulheres nas famílias latino-americanas e os diversos arquétipos femininos, temas tão contemporâneos. Quem de nós, mulheres, não é um pouquinho de todas aquelas personagens: a forte que carrega todas as cargas, como Luisa; mas também aquela que precisa ser meiga e perfeita como Isabela. Aquela sempre atenta aos detalhes, ao menor cochicho, às fofocas, como Dolores; a que cuida e cura através da alimentação diária, como a mãe de Mirabel; ou sua tia que define o “clima” com seu humor. Ou ainda, a mulher que se torna pilar e detentora da história da família, a que “comanda o show”, como a avó, e Mirabel, que não se encaixa e que batalha incansavelmente pela família.

Convenhamos que se se tratasse apenas disso, seria lindo, mas simples. Não, o filme vai bem além e mais uma vez a Disney surpreendeu ao abordar a resiliência familiar com tanta sensibilidade e riqueza de detalhes, como já havia feito em Coco ou Viva – a Vida é uma Festa.

Já a primeira cena do filme traz a força e também o peso que é compor uma família, quando a avó diz para Mirabel “Fortaleça nossa comunidade, fortaleça nosso lar, deixe sua família orgulhosa”, antes de passar pelo ritual de receber um dom. Quantas vezes não ouvimos isso ao longo da nossa trajetória, de formas diferentes, bem mais sutis? E quantas vezes também sentimos que não alcançamos aquilo que foi almejado, imaginado, desejado por aqueles que estavam responsáveis pelo nosso cuidado durante infância e adolescência? Assim como Mirabel, muitas vezes sentimos que frustramos as expectativas (muitas vezes irreais ou ideais demais) daqueles que queremos encher de orgulho, não intencionalmente, mas porque é essa nossa caminhada. Expectativas frustradas fazem parte do processo de crescimento – seu e dos outros que compõem a família.

Os dons que os personagens recebem no filme são metáforas para papéis cristalizados. Ao longo da nossa trajetória familiar, vamos recebendo alguns rótulos. Que menina meiga e obediente! Que menino travesso, levado, ou brincalhão, ou expansivo! Que menina atenta, curiosa, inteligente, chorona. Você é um menino corajoso ou durão ou agressivo. Etc. E assim vamos nos constituindo, nossa identidade vai se compondo com essas histórias que vamos ouvindo de nós mesmos desde o ventre, e nosso papel dentro da família vai sendo formado. Esse é um processo natural dentro de uma família, mas que deve ser cultivado com cuidado e atenção. O saudável é que nosso papel dentro da família seja flexível. Papéis cristalizados demais, rígidos, inflexíveis, nos tiram a possibilidade de histórias alternativas para nós mesmos, para ser mais do que um simples rótulo. Construir histórias alternativas, nos reinventar, é necessário para passarmos pelas diferentes etapas do ciclo vital e pelos desafios que encontramos pelo caminho.

Encanto aborda esse tema com maestria. A Família Madrigal está tomada por papéis cristalizados demais e as canções de Luisa e Isabela deixam isso claro. “Pressão que pinga, pinga, pinga e nunca vai parar” canta Luisa, para explicar que ser forte sempre é uma expectativa pesada demais. Mirabel, por ser livre de dons, ou seja, não tem um papel cristalizado, pode ajudar as irmãs (e o tio Bruno) a descobrirem histórias alternativas para sua identidade, a reformularem a forma como se veem e são vistas pela comunidade e a colocarem limites nas expectativas dos outros ou de si mesmas.

O filme também aborda de forma mais sutil as crenças que sustentam a família. A Família Madrigal tinha uma crença central que se personificava na figura da avó e numa frase que ela disse: “Trabalho e dedicação vão manter o milagre aceso”. Por isso seu empenho em manter o status quo dos papéis dos membros da família. Porém isso contribuía para uma crença menos funcional, colocada em palavras também pela avó na cena que ela esta falando na janela do quarto “Se nossa família soubesse como somos vulneráveis…”. Aqui fica explícito que o mito da invulnerabilidade permeia essa família. Para vencer, para superar as adversidades, precisam parecer invulneráveis. Ora, a resiliência não é ser invulnerável aos problemas e desafios, mas justamente usar nosso maior potencial humano, a vulnerabilidade, para sairmos da adversidade mais fortalecidos. A resiliência só floresce em meio ao apoio social e ao reconhecimento da nossa vulnerabilidade, como fica claro no fim do filme, quando toda a comunidade se une para reconstruir a casa em ruínas.

Na minha visão, uma das coisas mais belas desse filme é sua falta de vilão. Você começa a assistir e passa mais da metade do filme na expectativa de que o vilão apareça. Quem está ruindo a casa? Quem está pondo o encanto em perigo? E então o roteiro faz uma sutil virada, e você não lembra mais que esperava um vilão, pois quem está ruindo a casa são as próprias relações familiares, ela está ruindo por dentro. Sempre buscamos um culpado externo, mas quem rui a qualidade do nosso lar somos nós mesmos. São os nossos não-ditos, são os elefantes na nossa sala, são as expectativas e idealizações irreais, são os conflitos mal resolvidos, os segredos.

No filme, os não-ditos são simbolizados por Bruno e na frase “Não falamos sobre Bruno”! Você percebe a violência e o peso que há nessa frase dentro de uma família? A marginalização de um membro e negar aos mais novos uma parte da sua história familiar são caminhos para rachar a confiança, o vínculo, a união, a fé na própria família. Bruno tinha o dom de prever o futuro, e paradoxalmente seu papel cristalizado o tornava medroso e inseguro a respeito do próprio futuro. Era melhor e mais fácil, portanto, ser marginalizado da família, apesar de ter ido embora, mas não partido, ter ficado simbolicamente entremeado nas paredes da casa, que representa por si só a própria família. “Meu dom estava prejudicando a família, mas eu amo minha família”, como ele disse. E quantos de nós não precisamos muitas vezes nos afastar pelo peso das expectativas?

E por fim, após a rachadura final na confiança que Mirabel tinha na família e na avó, a vela se apaga. Que cena simbólica! A vela, ou lanternas, fogo, luzes, tem muita simbologia nos contos de fadas. Eles representam o coração, a fé, a confiança. Antigamente, a vela era colocada nas janelas para guiar quem chegava à noite. A vela representa um guia, portanto. Mas também é ao redor da luz que historicamente nos reunimos, podendo representar comunhão e vínculo também. Se tudo isso for bem cultivado, a vela nunca se apaga. Mas se nossas relações começam a ser minadas por exigências inflexíveis, expectativas pesadas demais, segredos, mágoas não resolvidas, então a vela se apagará e a confiança que nutre a família também! O filme deixa, portanto, o convite de cultivar com mais carinho e qualidade o encanto que guia nossas famílias.

Mariana Valls Atz é psicóloga, terapeuta de família, mulher latino-americana, apaixonada por desenhos animados, contos de fadas, mitologia, contação de histórias e todas essas simbologias que constroem nossas subjetividades.